Friday, February 02, 2007

ROMANCE BRASILEIRO


ASCPECTOS DA CARNAVALIZAÇÃO E ELEMENTOS PICARESCOS EM
O TETRANETO DEL-REI

MANTOLVANI, Rosangela M.(PG - 2004)

A idéia de carnavalização da literatura engloba não apenas os aspectos que se referem à transferência de práticas carnavalescas para o âmbito do linguagem literária mas, ainda, às idéias de subversão e ambigüidade contidas em produções textuais que parodiam outros textos anteriores a estes, de forma que o resultante da paródia passe a integrar o gênero cômico. A transferência de imagens do carnaval para a literatura tem suas origens na literatura antiga e vem sofrendo evolução ao longo do tempo, atravessando, inclusive, o século XX.
Mikhail Bakhtin, ao estudar os gêneros relacionados com o carnaval, nos indica que a linguagem carnavalesca se origina a partir das antigas festas gregas, as Saturnais:

O carnaval criou toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais, simbólicas, entre grandes e complexas ações de massa e gestos carnavalescos. (...) Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor grau de plenitude e adequação para a linguagem verbal, especialmente para a linguagem dos conceitos abstratos, no entanto é suscetível de certa transposição para a linguagem cognata, por caráter concretamente sensorial, das imagens artísticas, ou seja, para a linguagem da literatura. É a essa transposição do carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da literatura. (...) (Bakthin, 1981, p.105)

A carnavalização da literatura consiste, então, em uma forma, ou um tratamento dado à linguagem em que alguns aspectos se sobressaem, em as formas concreto-sensoriais indicam que se trata de uma linguagem em que há um "fundo carnavalesco", oriundo das linguagens das lendas, do folclore e, principalmente, do popular.
Nas novas produções, paralelamente a essa linguagem de fundo popular, uma outra forma de linguagem se contrapõe, armada de erudição, poeticidade, figuração, em que se verifica a presença dos aspectos consagrados do literário. Instaura-se, então, uma dubiedade como a ambigüidade que se vive na vida carnavalesca, em que os valores são invertidos, dessa forma, pode-se dizer que temos uma linguagem "às avessas".
A desigualdade social e hierárquica que se instala na "vida carnavalesca", normalmente paralela à vida oficial, instaura uma desigualdade na forma da linguagem: o estilo elevado e o baixo, ou popular se mesclam na construção textual. A paródia da história se contrapõe à história oficial, gerando uma tensão na re-construção de um novo texto, em que a história se confunde com a ficção no enredo da narrativa. Os fatos que a história não pode relatar, surgem na ficção associados aos fatos históricos, de forma a confundir o ficcional e o verídico. A veracidade e o verossímil se confundem como se confundem as vidas dos personagens, de tal maneira que o riso se instaura nos episódios em que o sério ou o sinistro se avizinha.

À familiarização estão relacionadas (...) as mésalliances carnavalescas [3a categoria da carnavalização]. (...) Entram nos contatos e combinações carnavalescas todos os elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos outros pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca. O carnaval aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc. (Bakthin, 1981, p.106)

A celebração do estilo baixo em contato com as formas eruditas e arcaicas do período renascentista surgem na obra histórica-ficcional do século XX, O tetraneto del-rei (1982), de Haroldo Maranhão, com o propósito de carnavalizar a história oficial sobre as expedições colonizadoras no Brasil, bem como as relações que se instalam entre homens e mulheres na nova terra descoberta, ou seja, as mesalliances1 e os laços familiares, quando o romancista trata de reconstruir, a partir da história oficial, o aparecimento no Brasil da família Albuquerque e seu ramo mestiço. Traçando o percurso dos Albuquerque a partir da vinda de uma expedição portuguesa que aportou no Brasil em 1531, reconstrói na senda da história os acontecimentos ficcionais narrados por D. Jerônimo de Albuquerque, um fidalgo português, cunhado de D. Duarte Coelho, donatário da capitania de Pernambuco, ambos, personagens da história oficial do período colonial brasileiro.
A figura histórica de Jerônimo de Albuquerque possui alguns registros na história oficial, cujas informações são resgatadas por diferentes pesquisas, como a realizada pela pesquisadora Consuelo Pondé de Sena, cujo artigo foi publicado no Jornal "A tarde", de Salvador - Bahia, no dia 03 de junho de 2000, com o título de "Brites, a capitoa", uma clara referência à irmã de Jerônimo de Albuquerque, D. Brites, esposa de Duarte Coelho. Sena informa que:

Seu irmão, Jerônimo de Albuquerque, em testamento de 1584, confessara julgar ser sua filha uma certa mameluca, filha de sua escrava Maria. Quanto a Jerônima, outra mameluca tida como sua filha, dizia ele que "só Deus sabia a verdade". O fato é que ignorando ele próprio o número exato dos filhos mamelucos que tivera, tinham-no por pai de muitos deles.
Os próprios filhos de Jerônimo cuidaram de "contabilizar" o número de irmãos que possuíam. Pero de Albuquerque supunha ter trinta e tal meio-irmãos e irmãs, sendo dez filhos do legítimo matrimônio de Jerônimo com D. Filipa "e os mais com ele são filhos bastardos que o dito seu pai houve em brasilas". Salvador de Albuquerque, outro filho conta que seu pai Jerônimo tivera com D. Filipa oito filhos "quatro machos e quatro fêmeas", além do que o dito seu pai fez em diversas negras brasilas, que foram muitos os que já morreram , e ora são só vivos entre machos e fêmeas, treze ou quatorze. Houvera contudo umas filhas mamelucas tidas com D. Maria do Espírito Santo, a índia Arcoverde, que foram legitimadas por Jerônimo de Albuquerque e fizeram bons casamentos com dois fidalgos estrangeiros e quatro portugueses de boa estirpe. (SENA in: JORNAL "A TARDE", 03-06-2000, p.4)

A sacramentada formação da família fidalga portuguesa, neste caso, submete-se ao processo de mésalliances carnavalescas, em sua mais íntima relação: a procriação. O envolvimento do nobre fidalgo com as "brasilas", produziu uma grande descendência. Entre filhos reconhecidos e bastardos, de sangue português e mestiço, tornou-se impossível contá-los com exatidão, mesmo por um dos irmãos. Considerando-se, ainda, que o pai reconhece as filhas mamelucas geradas pela escrava Maria do Espírito Santo, uma índia Arcoverde. Observa-se, então, que D. Jerônimo de Albuquerque, mesmo como personagem histórica, viveu, no Brasil, sob a linha do Equador, uma vida oficial, regrada, na cidade de Olinda, junto a sua irmã Brites e a esposa Filipa, e outra, carnavalizada, em meio às "brasilas" como informa Consuelo Pondé de Sena. Os aspectos de carnavalização que Haroldo Maranhão recupera na ficção de O tetraneto del-rei, têm, neste caso uma base histórica, documental e, possivelmente, verídica em que apoiar-se.

A narrativa O tetraneto del-rei se inicia com o embarque no Porto do Tejo, em Lisboa, a figura de D. Jerônimo de Albuquerque, nomeado "O Torto", e culmina com seu casamento com uma nativa brasileira, sendo traçada por um narrador em terceira pessoa, que, por vezes, em focalização interna aparenta ser a própria personagem, o qual seguirá os passos do protagonista por toda narrativa, relatando suas peripécias. Em meio à narrativa em terceira pessoa, encontram-se inserções e falas em primeira pessoa, além de cartas assinadas por Jerônimo de Albuquerque a uma senhora que permaneceu em Lisboa e com quem mantinha intimidades, cujo nome "Augusta" só se revela bem próximo ao final da narrativa.
A tensão que se estabelece entre os fatos ocorridos na narrativa em terceira pessoa e os narrados em primeira, nas cartas, explicita os meios pelos quais os fatos se reorganizam na escrita, de forma a atender as expectativas do destinatário, produzindo um desnível entre a informação veiculada e a "possível realidade". Ocorre que a "possível realidade", neste caso, é absoluta ficção, enquanto as cartas, corresponderiam, assim, à ficção da ficção, uma característica do discurso picaresco. Inverossímeis e repletas de absurdos atos heróicos, bem como comportamentos moralizantes, fora de contexto, as cartas possuem um tom erótico, porém contido, e dirigem-se à amada de D. Jerônimo que o aguarda em Lisboa, e são narradas em primeira pessoa pelo protagonista Jerônimo de Albuquerque.
A narrativa organiza-se em torno a dois espaços físicos principais: O litoral e O Mato. Outros espaços farão parte da narrativa: o galeão que transportou o fidalgo D. Jerônimo e a aldeia tabajara que se encontra no meio do mato na segunda parte. "É na rua e no mato que vivem os malandros, os marginais e os espíritos". (MATTA, s/d, p. 72). Os espaços da carnavalização são, neste caso da narrativa, sempre espaços abertos: o convés do navio, a praia, a floresta (ou mato), a praça da aldeia tabajara, os "cantos" da aldeia, onde se encontram os prisioneiros portugueses, ou os matos próximos à aldeia, em que acontecem fatos inusitados, como relações extraconjugais, sepultamento de almôndegas de porco, etc.
O espaço da carnavalização propicia, neste caso, o aparecimento do espaço da malandragem, de maneira que o personagem Torto leva uma vida desregrada, dissociado da ordem, tanto no que diz respeito às regras dos portugueses, quanto às regras e normas tabajaras. Sobre esse aspecto da malandragem, nos diz Gonzáles:

Em O tetraneto del-rei, a narração de terceira pessoa é interrompida por uma série de doze cartas do protagonista; nelas, ele narra dos fatos a seu favor e se atribui façanhas que não foram de tal porte. (...) há, (...) uma narração de primeira pessoa, paralela e mentirosa. (GONZÁLES, 1994, p.329)

Mentiras e façanhas associadas à narrativa em primeira pessoa, características do anti-herói picaresco, são algumas das marcas indeléveis do texto de Haroldo Maranhão. Ocorre que algumas marcas do pícaro lhe faltam, por isso consideramos esta narrativa repleta de elementos picarescos, mas não uma narrativa picaresca. Falta a ela o contexto de época, bem como a questão da fome, que não aparece em nenhum momento, ao contrário, o aspecto sofre uma profunda subversão, pois come-se muito bem e engorda-se em terras brasileiras.
Interrogado por Gonzáles sobre a "consciência [do autor] de algum tipo de relacionamento de seu texto com a picaresca clássica", Haroldo Maranhão nega qualquer relação. No entanto, o "Parecer" da Comissão Julgadora do VI Prêmio Guimarães Rosa outorgado a essa obra afirma que:

"Há, pois, uma exata correspondência entre linguagem e fabulação que corresponde às necessidades de fundação de uma realidade nova - o romance/paródia/picaresco - que aparece então como um universo próprio a envolver capciosa e inteligentemente o leitor". (COMISSÃO (...) apud GONZÁLES, 1994, p.326)

Neto do pícaro, o malandro brasileiro faz história na literatura a partir de meados do século XIX, seja por seu perfil vadio, por suas artimanhas, suas falcatruas, sua simpatia e um trânsito entre a espaço da ordem e o da desordem, como concluiu Antonio Candido em seus estudos na "Dialética da Malandragem2".
Se o malandro a que se refere Roberto da Matta3 não é o mesmo tipo que aportou no Brasil no século XVI, isso não significa que este não apresente os atributos necessários ao embrião da malandragem presente em muitas outras obras brasileiras, como Memórias de um Sargento de Milícias, Macunaíma: o herói sem nenhum caráter ou Serafim Ponte Grande, entre outras. É precisamente esse aspecto da malandragem a que se refere Antonio Candido que Maranhão procura enfatizar na configuração do personagem português, o fidalgo D. Jerônimo, que, ao aceitar um casamento de interesse com a filha do morubixaba Arco Verde, safa-se, assim, do ritual antropofágico, enquanto outros companheiros de galera servem de refeição a toda tribo tabajara. Além disso, O Torto, como é conhecido, não necessita de grandes esforços para alimentar-se, pelo contrário, consegue alimentação de ótima qualidade e hospedagem gratuita na aldeia tabajara, chegando mesmo a conseguir dois servos e mulheres ardentes por sexo, o que o difere do pícaro original.
Revisitando a história oficial através dos documentos da época do descobrimento e do período de colonização no Brasil, o escritor reproduz no texto a forma da escrita da época dos acontecimentos: arcaica, com uma gramática que relembra a disposição dos vocábulos no latim vulgar ou as construções camonianas. Repletos de sinédoques, sínqueses e outras bruscas inversões, o texto atende aos requisitos de obra de arte renascentista, com leves traços barrocos. Entre a linguagem erudita e elevada, organiza-se um discurso escatológico e grotesco, em que as falas do popular invadem o requinte renascentista. Os recursos da sátira estarão presentes em toda a narrativa, seja pela paródia, seja por situações inusitadas e muitas vezes absurdas, constituindo-se uma linguagem característica dos gêneros carnavalizados.
À altaneira figura do fino fidalgo, acostumado às andanças pelas cerimônias e festas da corte, descendente por sangue do bravo guerreiro Alffonço de Albuquerque, neto de rei, opõe-se a nova situação em que se encontra o tetraneto del-rei: a de fugitivo de calúnias inconfessáveis que o impediam de continuar em Lisboa, a custo de colocar em risco a própria liberdade ou mesmo a vida. Embarcado na esquadra de D. Duarte Coelho, marido de sua irmã Brites, o Torto sente-se incomodado pela companhia da gente comum:

(...) Desolava-o que o houvessem posto à ordem do próprio cunhado, D. Duarte Coelho. Sangue por sangue, que sangue portava o Duarte, marido da irmã Brites? - a nisso murmurar lhe pilhou agastado de similhante usurpação, por desfavorecido se havendo: que ele, o Albuquerque, neto de rei, comandante não fora e sim comandado. Regalava-se dito privilégio a causa de sua ascendência, a qual a juba lhe eriçava e inflado o peito lhe punha. (Maranhão, 1982, p.11)

O Torto é um orgulhoso de sua ascendência fidalga, marca que o persegue por toda a narrativa, como bem convinha aos bem-nascidos da época em que se situa a diegese. A antiga vida cortês opõe-se a esta, agora, a caminho do Brasil, durante dois meses em uma nau imunda, em meio a homens que lhe causam asco, tendo em vista a repulsa que sentiam ao banho. O espaço da nau é o espaço da carnavalização, em que o alto e o baixo de misturam, se mesclam, apesar da repugnância que sente o fidalgo por outros portugueses que considera menores.

As leis, proibições e restrições que determinavam o sistema e a ordem da vida comum, isto é, extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico e toadas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc. ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade (inclusive a etária) entre os homens. Elimina-se toda distância entre os homens e entra em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar entre os homens. [1a categoria] (Bakthin, 1981, p.105-106)

É no convés do navio que se dão os primeiros contatos que pressupõem a categoria da familiarização. O convés, assim como a praça pública, é considerado como espaço da manifestações carnavalescas, ou seja, como um espaço de subversão, em que o baixo e o alto se misturam, se mesclam, se confundem. Segundo Bakthin:

(...) Na literatura carnavalizada, a praça pública, como lugar da ação temática, torna-se biplanar e ambivalente: é como se através da praça pública real transparecesse a praça pública carnavalesca do livre contato familiar e das cenas de coroações e destronamento públicos. (...) ruas, tavernas, estradas, banhos públicos, convés de navios, etc - recebem nova interpretação público carnavalesca (...) (Idem, p. 110)

Outra categoria do carnaval pode ser observada tanto na construção das relações que se dão entre os que embarcam na nau portuguesa, em que fidalgos e degredados, limpos e sujos, "puros de sangue 4" e "impuros", livres e escravos, obrigatoriamente convivem no mesmo espaço, sujeitando-se uns às atitudes dos outros, longe da sociedade civilizada que os mantinha à distância. As finesses do fidalgo de nada lhe servem naquela nau, ou posteriormente, nas novas terras ocupadas por brutos de toda espécie e habitadas por antropófagos. Tanto o espaço da nau, quanto o da praça da aldeia tabajara e suas festas rituais passam a representar o espaço da carnavalização, em que não há mais a distância entre os homens, desaparecendo a hierarquia e a desigualdade social. Queixa-se o fidalgo em sua Carta à Senhora:

(...) Nesta pocilga mareante em que me pôs a desgraça, miserabilmente aposentado, vossa lembrança é que me alenta, apartando-me da idéia de lançar-me ao abismo e desertar desta imundície que me lança em ponto de vômito. A descomodidade avilta-me, avilta-me a ascendência avoenga, herança minha mais custosa. Imaginai, Senhora, este neto de D. Diniz a ombrear-se a tipos (...) vindos ninguém sabe donde e por que crimes vieram cá estabelecer-se, cardume de indivíduos mal reparados de roupa e bem fornidas as cabeças de só e só excremento. (...) (Maranhão, 1982, p.12)

Temáticas como a pureza de sangue, matéria cara aos ditames da Inquisição que se instauraria no século seguinte, e já insinuada em Lazarillo de Tormes (1554), novela espanhola do Anônimo Renascentista, são veiculadas no discurso do fidalgo cujo patrimônio se resume em sua honra escorada no brasão da árvore genealógica da família, em cujo tronco se encontra um rei português: D. Diniz. Contrapondo-se ao que diz a personagem D. Jerônimo em suas cartas, logo adiante ocorre a narrativa de como se apossou tal fidalgo de sangue real:

__ Verdade. Não abraço hipóteses. Verdade. Bem, terás que conformar-te com um ponto: tua origem é em paço, isto é certo. É em paço. Porém não procedes de casamento. Advéns de espúria vertente. Como eu, digo-te logo, que sou tetraneto ou pentaneto de puta. (....) Sabes de um Afonso Sanches? Pois esse Afonso Sanches era filho natural del rei D. Diniz e de Aldonça Roiz Telha. (...) Pois o filho da Telha e do rei trovador, o sobredito Afonso Sanches, casou Dom D. Tereza Lis, esta filha de conde, o Conde de Barcelos, senhor de Albuquerque. (...) Então! Albuquerques e Sanches entroncam na Aldonça e no Diniz, que é o sexto monarca de Portugal. E daí vens tu e venho eu. (...) (Maranhão, 1982, p.73) (grifo nosso)

A carnavalização da linguagem é realçada pela mescla entre o elevado, a dinastia real, e a origem mundana, representada pela figura da tetravó, amante do rei D. Diniz. Assim, a origem real não impediria que, a partir da saída de Portugal, o fidalgo D. Jerônimo de Albuquerque se encontrasse submetido às mais humilhantes situações, tanto na nau, espaço da desordem e de todo tipo de desleixo, como no litoral, ao tentar uma relação de amizade, frustrada, com o gentio que habitava as terras brasileiras, paródia da iniciativa de Nicolau Coelho, relatada na Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel, em 1500, produzido em português arcaico:

(...) acodirã pela praya homes quando dous quando tres de maneira que quando o batel chegou aa boca do rrio heram aly xbiij ou xx homes pardos todos nuus sem nhuũa cousa que lhes cobrisse suas vergonhas. traziam arcos nas maãos e suas seetas. vijnham todos rrijos para o batel e Njcolaao Coelho lhes fez sinal que posesem os arcos. e eles os poseram. Aly nom pode deles auver fala ne entedimento que aproveitasse polo mar quebrar na costa. Soomente deulhes huũ barete vermelho e huũa carapuça de linho que levava na cabeça e huũ sombreiro prto. (...) (...)5 (CAMINHA, 1500. In: CASTRO, 2003, p.44) )

Na tentativa de trocar presentes, o Torto percebe que os nativos não reagem, e desespera-se, fugindo. As seqüências de fracassos em suas investidas o fazem cair no ridículo, tanto no espaço do grupo de portugueses, quanto mais tarde junto ao grupo de nativos, na aldeia tabajara, após sua captura como prisioneiro de guerra.
Personagem singular, pois não encontra pares entre os portugueses, Jerônimo de Albuquerque deseja imensamente a paz entre os invasores e o gentio, enquanto seu discurso em primeira pessoa revela a defesa das populações nativas na luta pela preservação de seu espaço físico e sua integridade cultural, de forma a desconstruir o discurso do colonizador, que permeia a história oficial, este impregnado de ideologia mercantilista e católica romana.
O discurso do capitão Duarte Coelho, donatário de Capitania no Brasil, é porta-voz dessa ideologia da elite mercantilista portuguesa que reúne o poder real e o poder papal:

__ Assentados que estamos em o dia e em a hora de nossa embaixada, forçoso é que vo-los manifeste a tenção que nos compete em o peito agasalhar: de curarmos os negócios da terra, sem descurarmos dos do céu. E com isto quero significar que leve cada qual o arcabuz ao ombro e o Pater Noster à boca. (Maranhão, 1982, p. 69)

Parodiado e ironizado, o discurso de Coelho faz ver a incoerência das investidas colonizadoras em terras brasileiras. Levar o Pater Noster6 à boca tem um significado muito próximo das ações das Cruzadas, que se estendem à América na descoberta das novas terras, em que a guerra e a religião se irmanam com o objetivo de conquista e cristianização dos "pagãos". Jerônimo de Albuquerque que se opõe à violência, responsabiliza o elemento português pelo início das lutas que se dariam pela posse da terra. O protagonista posiciona-se, inclusive, contra o cunhado Dom Duarte Coelho, que considera maluco. Achincalhado pelo protagonista da narrativa, o capitão Duarte Coelho procura organizar a tropa , cujo treinamento militar é satirizado pelo narrador que visualiza os preparativos para a guerra de forma irônica, quase como uma pantomima. A demonstração de força do "exército português" é, na narrativa, coroada de elementos cômicos que tecem todo o descrédito de sua capacidade em ocupar de forma heróica as terras brasileiras.
O discurso de Maranhão, funciona como contraponto a alguns discursos históricos oficiais, que se encontram entre os documentos de época, como o discurso de Pero de Magalhães Gândavo, cujo extrato procuramos recuperar com o intuito de revelar o processo de carnavalização dessa escrita:

A língua de que usam, toda pela costa, é uma, ainda que em certos vocábulos difere nalgumas partes; mas não de maneira que se deixem uns aos outros de entender: e isto até altura de vinte e sete graus, que daí por diante há outra gentilidade, de que nós não temos tanta notícia, que falam já outra língua diferente. Esta de que trato, que é geral pela costa, é mui branda, e a qualquer nação fácil de tomar. Alguns vocábulos há nela de que não usam senão as fêmeas, e outros que não servem senão para os machos: carece de ter três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta, nem peso, nem medida. (Gandavo, s/d, p.3)

Enquanto o historiador português percebe os silvícolas como verdadeiras feras, e considera que não possuam fé, lei ou rei, a narrativa de Maranhão, por meio do protagonista Jerônimo de Albuquerque, revela em que consiste a "lei tabajara", trata seu chefe por "rei", ao admitir que se casa com uma "princesa", Muira-Ubi, e casa-se, primeiro, segundo a "fé e a tradição tabajara", para apenas posteriormente casar-se na fé cristã. Desconstruindo o discurso de Gandavo e reconstruindo de forma irônica e debochada todo o ritual das festas tradicionais, tanto dos tabajaras quanto dos portugueses, carnavaliza as relações culturais que se dão entre os membros da sociedade indígena e seus "dominadores".
Em seu discurso, por meio das cartas que o personagem Jerônimo de Albuquerque envia a sua Senhora, o autor providencia a desconstrução do discurso da conquista, e sua voz revela sua posição a favor dos antigos donos das terras, os tabajaras, procurando compreender seu comportamento, ritos, danças e leis.
Sua estadia entre os tabajaras, implica em ser despojado de suas vestes de fidalgo, o que equivale à ação de destronamento carnavalesco. Juntamente com suas vestes de fidalgo, perde também todo o poder que lhe era conferido em Portugal. Em terras brasileiras, Jerônimo passa a andar nu, como os silvícolas, subvertendo os valores que lhe são caros. Despido de suas roupas, que o faziam diferente dos homens comuns, é visto como um "Adão". O sol dos trópicos causa-lhe profundas mudanças, inclusive na cor da pele, que perde o branco e torna-se quase acobreada. Se o destronamento por que passa Jerônimo não implica em perda de poder real, significa perda de valores culturais, perda de prestígio, desde sua partida de Portugal, num processo de rebaixamento que o reduz a um quase escravo dos silvícolas, situação que se reverte apenas no final da narrativa, quando Jerônimo parte com Muira-Ubi (Maria do Espírito Santo Arcoverde) para Olinda, onde residia sua irmã Brites e o cunhado Duarte Coelho.
A excentricidade, outra categoria carnavalesca, se revela nas imagens do fidalgo pelas terras brasileiras, tendo como ponto de partida sua tentativa de amizade com os silvícolas, que o rebaixam perante os homens que tem sob seu comando, pela forma como defende a idéia de solidariedade entre nativos e invasores, pela sua relação com o poeta Camões, ambos cegos de um dos olhos, por sua linguagem e ambigüidade no comportamento. Assim que capturado pelos indígenas, continua preso aos rituais e cerimônias da Corte, seja pela forma de expressar-se, pela gentileza, ou por suas mesuras, as quais jamais abandonou.
A carnavalização da literatura no texto de Maranhão parodia e ironiza a própria produção literária da época em que se passa a narrativa, o século XVI. Em seus sonhos permonitórios, o anti-herói recupera a figura de Luiz Vaz de Camões, subvertendo pelo discurso a qualidade da produção literária daquele que seria o maior escritor épico em língua portuguesa. A carnavalização da própria construção literária ocorre em diversos momentos, e tem seu ápice no episódio em que o Torto se recorda de dois poetas: o Bandarra, cujos versos faziam uma premonição da descoberta de novas terras e os de D. Juan Gaio, que lembra a honra do sangue dos Albuquerques. Jerônimo conjectura, então sobre os versos de Camões:

(...) ao recordar-se de uns que particularmente o tocava, por a si dizerem-lhe também respeito, de um Juan Gaio, D. Juan Gaio: "Do limpo sangue dos godos / do filho do rei Diniz / Vêm os Albuquerques todos / com a quinas e a flor de Lis" (...)
O caguinchas do Camães talharia fermosos versos assi?, indagou-se o fidalgo, de pronto entrando a pulsar-lhe o godo sangue e a luzir-lhe a valerosa ascendência no olhar de sobranceria, librando sobre aqueles matos e aqueles feros. (...) (Maranhão, 1982, p.35)

Subvertendo as críticas literárias oficiais, a voz do Torto insinua que Camões não seria capaz, já que desconhecido, de escrever versos à altura destes que foram feitos especialmente para homenagear as origens reais de sua dinastia, ou outros poetas menores, porém conhecidos na época. Outras paródias se instalam no texto, aludindo a textos de autores famosos, que se mesclam no discurso em um processo de estilização bastante interessante que se espalham pelo texto. Especialmente nas cartas à Senhora, Jerônimo de Albuquerque parafraseia ou ironiza os versos dos sonetos ou da épica camoniana: "Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!" (MARANHÃO, 1982, p.46) ou "(...) prenda minha gentil que entre as pernas guardo" (Idem, p.56) = Alma minha gentil que te partistes", ou ainda, título de obras da literatura brasileira surgem no texto, como "Tutaméia" (id.ibid., p.70). Surgem referências explícitas a autores, como a João Cabral de Melo Neto: "Sou alto e ledo; ledo sou: aonde quer que eu vá encontro sempre os rios e suas águas lavadeiras vão limpando as paisagens. De qual João escutei esta voz?, de um Cabral amantíssimo de rios!: em qualquer viagem o rio é o companheiro melhor. (...)" (Maranhão, 1982, p.113). Ou a referência a Rui Barbosa: "__ Tão tardiamente está a enxergar o que tinhas mesmo à mão! Criança: não verás nenhum país como este!" (Idem, p.114)
A paródia da literatura pela literatura, organiza o que consideramos uma metalinguagem literária carnavalizada, uma vez que considerável quantidade dessas estilizações paródicas produzem o riso. Com referência ao riso carnavalesco, Bakthin considera que:

O próprio riso carnavalesco é profundamente ambivalente. Geneticamente, ele está relacionado às formas mais antigas do riso ritual. Este estava voltado para o supremo; achincalhava-se, ridicularizava-se o sol (deus supremo), outros deuses, o poder supremo da terra para força-los a renovar-se. Todas as formas do riso ritual estavam relacionadas com a morte e o renascimento, com o ato de produzir, com os símbolos da força produtiva. (...) Na forma do riso resolvia-se muito daquilo que era inacessível na forma do sério. Na Idade Média, sob a cobertura da liberdade legalizada do riso, era possível a paródia sacra, ou seja, a paródia dos textos e rituais sagrados. (...) No ato do riso carnavalesco combinam-se a morte e o renascimento, a negação (a ridicularização) e a afirmação (o riso de júbilo). É um riso profundamente universal e assentado numa concepção do mundo. É essa a especificidade do riso carnavalesco ambivalente. (BAKTHIN, 1981, p. 109)

A paródia dos textos bíblicos que constitui uma das características da linguagem carnavalizada, também presente nos textos das narrativas picarescas do século XVI e XVII, surge no texto de Maranhão, entremeando o discurso do cômico-sério, nos moldes das sátiras da Idade Média, de acordo com os pressupostos bakthinianos, seja nas palavras do narrador, ou pela voz de D. Duarte Coelho, ou ainda, a do protagonista, em que o sagrado e o profano se cruzam, especificando uma outra categoria da carnavalização da literatura: a profanação:

"(...) Deus tenha piedade de mim, que nunca a tive de ninguém. ( MARANHÃO, 1982, p. 47) [o Torto, em carta à Senhora]
"__ Mininos meus. Que todos são mininos meus, eu o pai, eu o filho, eu o espírito santo." (...) [D. Duarte, decidindo sobre a guerra]
E o fogo se fez. E a luz se fez, E a fumaça se fez. (...) [= E fez-se a luz (Gênesis)](Idem, p. 66)
(...) o caminho para a distância, chão nosso de cada dia, chão de mínimos amantes. (id. ibid., p.67) [o discurso de don Duarte]

Estas e outras construções paródicas, que invadem a narrativa, oferecem um olhar profano sobre o religioso, marca dos discursos da época, insinuando o conhecido provérbio português quinhentista de que "Abaixo do Equador, tudo é permitido." É essa permissão em terras tropicais que o narrador de O tetraneto del-rei procura retratar e ironizar na narrativa, desvelando o lado humano das relações, os fatos de um mundo en envers, subversão dos valores ideológicos da Inquisição na Europa, da Igreja castradora, das leis e regras repressoras da sociedade portuguesa.
O caráter anti-heróico do protagonista pode funcionar muitas vezes como o ponto de partida para o enquadramento em um romance no gênero picaresco, pois, segundo Gonzáles, "a picaresca nasce na quebra do modelo do narrador onisciente - de terceira pessoa, substituído pela pseudo-autobiografia - e na paródia do herói clássico" (GONZÁLES, 1994, p. 339), sendo o segundo aspecto a pedra de toque para a caracterização de um romance do tipo picaresco.
O Torto encaixa-se nos requisitos acima, funcionando como a paródia do herói clássico, o fidalgo destemido, cuja espada funciona como guardiã dos valores cavaleirescos. Espada essa que o Torto procura não utilizar nunca, antes, apostando na paz e em seus órgãos sexuais, metáfora satirizada da espada do fidalgo português nessa narrativa.
O tamanho de seus órgãos sexuais é um dos elementos do cômico, citado em toda narrativa e associado a sentimentos de poder, orgulho, encantamento por parte do protagonista e, ainda, de inveja, desejo, raiva, humilhação por parte de outros personagens. Ao deparar-se com o desejo de d. Jerônimo d'Albuquerque, expresso por sua borduna, a filha do morubixaba se assusta e o encontro entre o casal que daria origem a um dos tipos-base formadores do povo brasileiro é satirizado pelo narrador, que conta a história abordada sob o viés cômico, pela visão carnavalesca, tal que a gritaria se espalhou pelo centro da tribo, espaço reservado às festas rituais e comemorativas. O interesse do homem põe em disparada a moça.
Os anti-heróis das narrativas picarescas, geralmente, possuem uma origem modesta, geralmente marginalizada, por questões econômicas, mas, principalmente, pela questão da honra e da "impureza de sangue". Torto, ao contrário, orgulha-se e gaba-se de sua origem aristocrática. Não descendendo, de marginais, termina por enquadrar-se na marginalidade quando se desentende com seu cunhado e é posto à parte do grupo e, mais tarde, quando prisioneiro, fica alijado tanto dos grupos sociais que despreza quanto dos índios, que o ridicularizam.
Muitos críticos conceituam os pícaros como seres que enfrentam uma sociedade hostil, armados apenas de sua astúcia. A astúcia é uma das características principais do Torto, que consegue manter-se vivo, recusando-se a participar das lutas contra os índios, e procurando meios de ser poupado do ritual antropofágico quando se torna prisioneiro dos tabajaras. O recurso a essa astúcia leva o pícaro à trapaça, o que não ocorre com o "Torto", cuja única grande trapaça se consolida com o seu casamento, cuja articulação, segundo o narrador, pertence a Muira-Ubi, que subverte as leis tabajaras para conseguir o marido que deseja.
O projeto de ascensão social, instância peculiar da picaresca clássica, encontra-se presente na narrativa, seja pelo desejo de apoderar-se das riquezas da terra, que habita as mentes tanto do protagonista, quanto de D. Duarte ou dos demais personagens que sonham com a riqueza e a nobreza, seja pela superação individual de seus percursos individuais. Assim, o Torto sonha em integrar-se à nobreza, não por via das armas e da guerra, mas por ser reconhecido como o "pacificador da Nova Lusitânia", através de um pacto de paz entre índios e brancos que seria reconhecido até mesmo pelo rei português. Ou seja, em seu projeto de ascensão social, o Torto pensa em valer-se da astúcia e de suas habilidades como mentiroso e enganador para estabelecer nas novas terras a hegemonia portuguesa via mestiçagem, ou seja, estabelecendo mésalliances.
O "princípio da viagem", que faz do pícaro um ser itinerante também se encontra presente na narrativa O tetraneto del-rei, pois O Torto viaja de Portugal às terras brasileiras, saindo em seguida do litoral às matas, e das matas à aldeia tabajara, de onde, finalmente, parte em direção a Olinda. A antítese entre a metrópole e o mato é uma das tônicas da narrativa, quando o Torto se depara com a frustração e a certeza de que jamais regressaria a Lisboa.
Com relação ao trabalho, considera-se que o pícaro clássico procura caminhos alheios ao trabalho para atingir o status social que deseja e que considera nobre. O meio que escolhe para obter seu sucesso é o da conquista, coincidindo neste ponto com os objetivos do protagonista de O tetraneto del-rei, pois D. Jerônimo procura meios bastante originais de conquistar as novas terras e suas riquezas: a paz e a malandragem. Em seu universo encontra-se ausente o trabalho, mesmo no tempo em que estava em Portugal quanto em terras brasileiras, confirmando mais um elemento em seu perfil picaresco. Segundo ele, entende apenas de "mulheres". Esse traço erótico tão enfatizado entre as características de D. Jerônimo de Albuquerque é que o faz integrar o espaço da malandragem e rompe sua relação com o pícaro clássico, assim como a presença de patrões ou amos, que se encontram ausentes na narrativa.
O maniqueísmo existente nos textos picarescos clássicos, cujos extremos entre o "bem" e o "mal" necessitam ser vencidos pelos pícaros para que possam encaixar-se entre os "homens de bem", no contexto do anti-herói brasileiro também se dissipa. Na narrativa O tetraneto del-rei, as fronteiras entre o bem e o mal se esvaziam e os discursos se contrapõe, pois o conteúdo do discurso histórico oficial e das cartas de D. Jerônimo à Senhora, é parodiado ironizado e desmentido, muitas vezes, pelo discurso do narrador em terceira pessoa.
O bem e o mal são trazidos de fora para o universo dos protagonistas, mas estes não têm consciência de sua dimensão, apenas agem em resposta a uma sociedade que os oprime, como no caso do Torto, prisioneiro das terras brasileiras, sujeito às ordens de D. Duarte e, posteriormente, prisioneiro do tabajaras e sujeito às suas leis. O Torto, no entanto, é capaz de ludibriar os aspectos do bem e do mal que chegam ao seu universo trazido pelas forças exteriores e, superando-as é capaz de instalar uma nova ordem de relações em que essas forças são anuladas.
Carnavalizando as forças do mal e do bem, por meio de um processo em que essas forças se anulam, a narrativa parodia o bem e o mal, e, no final, a festa de casamento tabajara de Jerônimo d'Albuquerque e de Maria do Espírito Santo Arcoverde, recupera a igualdade entre os homens, revelando a subversão dos valores religiosos, dos ritos, através da orgia que se instala durante as comemorações do casamento inter-racial, na praça da aldeia tabajara:

Foi esponsália ou saturnália? Que declarados esposos, Torto e Muira-Ubi, ao abrigo da lei tabajara, rompeu um estouro de boiada. Eram os convivas a milhares. Que se banquetearam, atafulharam-se, abarrotaram-se, lambujaram, entornaram, libaram, adegaram-se, encantrinaram-se, dessedentaram-se, foliaram, folgaram, patuscaram, bailaram, galantearam, fornicaram, motejaram, pecaminaram, prevaricaram, arrotaram, bufaram, babaram, desaforam-se, ofegaram, exaustaram-se, pompearam, gargalharam, roncaram, folgazaram, supiraram, saciaram-se, fremiram, arfaram, suaram, masturbaram-se, esmurraram-se, unharam-se, dentaram-se, frecharam-se e dormiram um sono morto, os que mortos não restaram jazidos ao chão. (Maranhão, 1982, p.190)

Diante da orgia que se instalou na festa é possível avaliar o nível de relações que se estabeleceu entre os homens, em um espaço carnavalizado, a festa da carne, considerando que, provavelmente, muitos prisioneiros portugueses haviam servido de banquete nas comemorações das bodas, de carne humana, subvertendo as regras do próprio carnaval, em que a profanação, a excentricidade, as familiariadades e as mésalliances se encontram presentes na praça pública, onde D. Jerônimo é o "príncipe" tabajara, ao casar-se com a "princesa", filha do morubixaba, uma festa popular, uma afronta aos rituais cristãos, a profanação do sacralizado da religião pelo elemento europeu.
Segundo Roberto da Matta, existe uma diversidade carnavalesca e, "todos eles são atualizações de uma mesma dramatização fundamental, indiscutível enquanto norma e práxis e, por isso mesmo, capaz de inventar seus múltiplos planos dentro de uma fantástica unidade dramática" (MATTA, s/d., p.67)
É na diversidade carnavalesca que se encontra o ritual dos nativos brasileiros, em que a presença do fogo, das imagens biunívocas, dos rituais e das profanações, do riso carnavalizado se encontram na senda de uma história que recorta o oficial e o ficcional, revelando uma outra faceta das origens do povo brasileiro, das relações entre portugueses e colonizadores, em que a sátira atinge a uns e outros da mesma forma, e de um espaço em que somente a astúcia e a malandragem poderiam superar as barreiras da integração. O Tetraneto del-rei presta-se a coroar de êxito uma história em que os vencedores não se consolidam como heróis, e sim os vencidos que, durante séculos, manipularam os anseios dos invasores, invadindo suas noites com imensos pesadelos antropofágicos e fantasmas da morte.

BIBLIOGRAFIA

BAKTHIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiésvski. Trad. De Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. (239 p.)
CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Idem. O discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades,
CASTRO, Sílvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L & PM, 2003 (156p.)
GANDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz. S/d, p.3
GONZÁLEZ, Mário M. Os Malandros do Pós-Milagre. In: Idem. A saga do anti-herói. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. (p.315- 357)
MATTA, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro. Zahar Editores, (s/d) (p.67-108)

Notas

1 As mésalliances compreendem os casamentos que se dão entre pessoas de classes sociais diferentes, ou de etnias diferentes, neste caso, refere-se ao casamento de um fidalgo português com uma silvícola brasileira, evidenciando tanto a diferença de classe social quanto étnica.

2 Segundo Antonio Candido, ao analisar a obra de Manuel Antonio de Almeida, o malandro Leonardinho, filho de Leonardo Pataca, é o malandro brasileiro, que se movimenta entre as classes sociais, em dois universos diferentes: o da ordem, representado por um grupo de personagens mais propensas às normas e regras sociais, e uma outra, marginalizada, cujo universo é o da desordem.

3 MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 3ª ed., Rio de Janeiro: Zahar Editores, s/d.

4 A questão da pureza de sangue encontra-se associada aos valores raciais e religiosos do século XIX. Assim, os "puros de sangue" são aqueles descendentes de antigas famílias portuguesas, enquanto os impuros são os de origem judia e moura, mouriscos e toda espécie de pessoas que se qualificam entre os "hereges" e "cristãos novos".

5 TRADUÇÃO: Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.
Ali não poude haver deles fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um barrete vermelho que usava na cabeça e um sombreiro preto.

6 Expressão latina = (a oração do ) Pai Nosso

ROMANCE BRASILEIRO


ASCPECTOS DA CARNAVALIZAÇÃO E ELEMENTOS PICARESCOS EM
O TETRANETO DEL-REI

MANTOLVANI, Rosangela M.(PG - 2004)

A idéia de carnavalização da literatura engloba não apenas os aspectos que se referem à transferência de práticas carnavalescas para o âmbito do linguagem literária mas, ainda, às idéias de subversão e ambigüidade contidas em produções textuais que parodiam outros textos anteriores a estes, de forma que o resultante da paródia passe a integrar o gênero cômico. A transferência de imagens do carnaval para a literatura tem suas origens na literatura antiga e vem sofrendo evolução ao longo do tempo, atravessando, inclusive, o século XX.
Mikhail Bakhtin, ao estudar os gêneros relacionados com o carnaval, nos indica que a linguagem carnavalesca se origina a partir das antigas festas gregas, as Saturnais:

O carnaval criou toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais, simbólicas, entre grandes e complexas ações de massa e gestos carnavalescos. (...) Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor grau de plenitude e adequação para a linguagem verbal, especialmente para a linguagem dos conceitos abstratos, no entanto é suscetível de certa transposição para a linguagem cognata, por caráter concretamente sensorial, das imagens artísticas, ou seja, para a linguagem da literatura. É a essa transposição do carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da literatura. (...) (Bakthin, 1981, p.105)

A carnavalização da literatura consiste, então, em uma forma, ou um tratamento dado à linguagem em que alguns aspectos se sobressaem, em as formas concreto-sensoriais indicam que se trata de uma linguagem em que há um "fundo carnavalesco", oriundo das linguagens das lendas, do folclore e, principalmente, do popular.
Nas novas produções, paralelamente a essa linguagem de fundo popular, uma outra forma de linguagem se contrapõe, armada de erudição, poeticidade, figuração, em que se verifica a presença dos aspectos consagrados do literário. Instaura-se, então, uma dubiedade como a ambigüidade que se vive na vida carnavalesca, em que os valores são invertidos, dessa forma, pode-se dizer que temos uma linguagem "às avessas".
A desigualdade social e hierárquica que se instala na "vida carnavalesca", normalmente paralela à vida oficial, instaura uma desigualdade na forma da linguagem: o estilo elevado e o baixo, ou popular se mesclam na construção textual. A paródia da história se contrapõe à história oficial, gerando uma tensão na re-construção de um novo texto, em que a história se confunde com a ficção no enredo da narrativa. Os fatos que a história não pode relatar, surgem na ficção associados aos fatos históricos, de forma a confundir o ficcional e o verídico. A veracidade e o verossímil se confundem como se confundem as vidas dos personagens, de tal maneira que o riso se instaura nos episódios em que o sério ou o sinistro se avizinha.

À familiarização estão relacionadas (...) as mésalliances carnavalescas [3a categoria da carnavalização]. (...) Entram nos contatos e combinações carnavalescas todos os elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos outros pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca. O carnaval aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc. (Bakthin, 1981, p.106)

A celebração do estilo baixo em contato com as formas eruditas e arcaicas do período renascentista surgem na obra histórica-ficcional do século XX, O tetraneto del-rei (1982), de Haroldo Maranhão, com o propósito de carnavalizar a história oficial sobre as expedições colonizadoras no Brasil, bem como as relações que se instalam entre homens e mulheres na nova terra descoberta, ou seja, as mesalliances1 e os laços familiares, quando o romancista trata de reconstruir, a partir da história oficial, o aparecimento no Brasil da família Albuquerque e seu ramo mestiço. Traçando o percurso dos Albuquerque a partir da vinda de uma expedição portuguesa que aportou no Brasil em 1531, reconstrói na senda da história os acontecimentos ficcionais narrados por D. Jerônimo de Albuquerque, um fidalgo português, cunhado de D. Duarte Coelho, donatário da capitania de Pernambuco, ambos, personagens da história oficial do período colonial brasileiro.
A figura histórica de Jerônimo de Albuquerque possui alguns registros na história oficial, cujas informações são resgatadas por diferentes pesquisas, como a realizada pela pesquisadora Consuelo Pondé de Sena, cujo artigo foi publicado no Jornal "A tarde", de Salvador - Bahia, no dia 03 de junho de 2000, com o título de "Brites, a capitoa", uma clara referência à irmã de Jerônimo de Albuquerque, D. Brites, esposa de Duarte Coelho. Sena informa que:

Seu irmão, Jerônimo de Albuquerque, em testamento de 1584, confessara julgar ser sua filha uma certa mameluca, filha de sua escrava Maria. Quanto a Jerônima, outra mameluca tida como sua filha, dizia ele que "só Deus sabia a verdade". O fato é que ignorando ele próprio o número exato dos filhos mamelucos que tivera, tinham-no por pai de muitos deles.
Os próprios filhos de Jerônimo cuidaram de "contabilizar" o número de irmãos que possuíam. Pero de Albuquerque supunha ter trinta e tal meio-irmãos e irmãs, sendo dez filhos do legítimo matrimônio de Jerônimo com D. Filipa "e os mais com ele são filhos bastardos que o dito seu pai houve em brasilas". Salvador de Albuquerque, outro filho conta que seu pai Jerônimo tivera com D. Filipa oito filhos "quatro machos e quatro fêmeas", além do que o dito seu pai fez em diversas negras brasilas, que foram muitos os que já morreram , e ora são só vivos entre machos e fêmeas, treze ou quatorze. Houvera contudo umas filhas mamelucas tidas com D. Maria do Espírito Santo, a índia Arcoverde, que foram legitimadas por Jerônimo de Albuquerque e fizeram bons casamentos com dois fidalgos estrangeiros e quatro portugueses de boa estirpe. (SENA in: JORNAL "A TARDE", 03-06-2000, p.4)

A sacramentada formação da família fidalga portuguesa, neste caso, submete-se ao processo de mésalliances carnavalescas, em sua mais íntima relação: a procriação. O envolvimento do nobre fidalgo com as "brasilas", produziu uma grande descendência. Entre filhos reconhecidos e bastardos, de sangue português e mestiço, tornou-se impossível contá-los com exatidão, mesmo por um dos irmãos. Considerando-se, ainda, que o pai reconhece as filhas mamelucas geradas pela escrava Maria do Espírito Santo, uma índia Arcoverde. Observa-se, então, que D. Jerônimo de Albuquerque, mesmo como personagem histórica, viveu, no Brasil, sob a linha do Equador, uma vida oficial, regrada, na cidade de Olinda, junto a sua irmã Brites e a esposa Filipa, e outra, carnavalizada, em meio às "brasilas" como informa Consuelo Pondé de Sena. Os aspectos de carnavalização que Haroldo Maranhão recupera na ficção de O tetraneto del-rei, têm, neste caso uma base histórica, documental e, possivelmente, verídica em que apoiar-se.

A narrativa O tetraneto del-rei se inicia com o embarque no Porto do Tejo, em Lisboa, a figura de D. Jerônimo de Albuquerque, nomeado "O Torto", e culmina com seu casamento com uma nativa brasileira, sendo traçada por um narrador em terceira pessoa, que, por vezes, em focalização interna aparenta ser a própria personagem, o qual seguirá os passos do protagonista por toda narrativa, relatando suas peripécias. Em meio à narrativa em terceira pessoa, encontram-se inserções e falas em primeira pessoa, além de cartas assinadas por Jerônimo de Albuquerque a uma senhora que permaneceu em Lisboa e com quem mantinha intimidades, cujo nome "Augusta" só se revela bem próximo ao final da narrativa.
A tensão que se estabelece entre os fatos ocorridos na narrativa em terceira pessoa e os narrados em primeira, nas cartas, explicita os meios pelos quais os fatos se reorganizam na escrita, de forma a atender as expectativas do destinatário, produzindo um desnível entre a informação veiculada e a "possível realidade". Ocorre que a "possível realidade", neste caso, é absoluta ficção, enquanto as cartas, corresponderiam, assim, à ficção da ficção, uma característica do discurso picaresco. Inverossímeis e repletas de absurdos atos heróicos, bem como comportamentos moralizantes, fora de contexto, as cartas possuem um tom erótico, porém contido, e dirigem-se à amada de D. Jerônimo que o aguarda em Lisboa, e são narradas em primeira pessoa pelo protagonista Jerônimo de Albuquerque.
A narrativa organiza-se em torno a dois espaços físicos principais: O litoral e O Mato. Outros espaços farão parte da narrativa: o galeão que transportou o fidalgo D. Jerônimo e a aldeia tabajara que se encontra no meio do mato na segunda parte. "É na rua e no mato que vivem os malandros, os marginais e os espíritos". (MATTA, s/d, p. 72). Os espaços da carnavalização são, neste caso da narrativa, sempre espaços abertos: o convés do navio, a praia, a floresta (ou mato), a praça da aldeia tabajara, os "cantos" da aldeia, onde se encontram os prisioneiros portugueses, ou os matos próximos à aldeia, em que acontecem fatos inusitados, como relações extraconjugais, sepultamento de almôndegas de porco, etc.
O espaço da carnavalização propicia, neste caso, o aparecimento do espaço da malandragem, de maneira que o personagem Torto leva uma vida desregrada, dissociado da ordem, tanto no que diz respeito às regras dos portugueses, quanto às regras e normas tabajaras. Sobre esse aspecto da malandragem, nos diz Gonzáles:

Em O tetraneto del-rei, a narração de terceira pessoa é interrompida por uma série de doze cartas do protagonista; nelas, ele narra dos fatos a seu favor e se atribui façanhas que não foram de tal porte. (...) há, (...) uma narração de primeira pessoa, paralela e mentirosa. (GONZÁLES, 1994, p.329)

Mentiras e façanhas associadas à narrativa em primeira pessoa, características do anti-herói picaresco, são algumas das marcas indeléveis do texto de Haroldo Maranhão. Ocorre que algumas marcas do pícaro lhe faltam, por isso consideramos esta narrativa repleta de elementos picarescos, mas não uma narrativa picaresca. Falta a ela o contexto de época, bem como a questão da fome, que não aparece em nenhum momento, ao contrário, o aspecto sofre uma profunda subversão, pois come-se muito bem e engorda-se em terras brasileiras.
Interrogado por Gonzáles sobre a "consciência [do autor] de algum tipo de relacionamento de seu texto com a picaresca clássica", Haroldo Maranhão nega qualquer relação. No entanto, o "Parecer" da Comissão Julgadora do VI Prêmio Guimarães Rosa outorgado a essa obra afirma que:

"Há, pois, uma exata correspondência entre linguagem e fabulação que corresponde às necessidades de fundação de uma realidade nova - o romance/paródia/picaresco - que aparece então como um universo próprio a envolver capciosa e inteligentemente o leitor". (COMISSÃO (...) apud GONZÁLES, 1994, p.326)

Neto do pícaro, o malandro brasileiro faz história na literatura a partir de meados do século XIX, seja por seu perfil vadio, por suas artimanhas, suas falcatruas, sua simpatia e um trânsito entre a espaço da ordem e o da desordem, como concluiu Antonio Candido em seus estudos na "Dialética da Malandragem2".
Se o malandro a que se refere Roberto da Matta3 não é o mesmo tipo que aportou no Brasil no século XVI, isso não significa que este não apresente os atributos necessários ao embrião da malandragem presente em muitas outras obras brasileiras, como Memórias de um Sargento de Milícias, Macunaíma: o herói sem nenhum caráter ou Serafim Ponte Grande, entre outras. É precisamente esse aspecto da malandragem a que se refere Antonio Candido que Maranhão procura enfatizar na configuração do personagem português, o fidalgo D. Jerônimo, que, ao aceitar um casamento de interesse com a filha do morubixaba Arco Verde, safa-se, assim, do ritual antropofágico, enquanto outros companheiros de galera servem de refeição a toda tribo tabajara. Além disso, O Torto, como é conhecido, não necessita de grandes esforços para alimentar-se, pelo contrário, consegue alimentação de ótima qualidade e hospedagem gratuita na aldeia tabajara, chegando mesmo a conseguir dois servos e mulheres ardentes por sexo, o que o difere do pícaro original.
Revisitando a história oficial através dos documentos da época do descobrimento e do período de colonização no Brasil, o escritor reproduz no texto a forma da escrita da época dos acontecimentos: arcaica, com uma gramática que relembra a disposição dos vocábulos no latim vulgar ou as construções camonianas. Repletos de sinédoques, sínqueses e outras bruscas inversões, o texto atende aos requisitos de obra de arte renascentista, com leves traços barrocos. Entre a linguagem erudita e elevada, organiza-se um discurso escatológico e grotesco, em que as falas do popular invadem o requinte renascentista. Os recursos da sátira estarão presentes em toda a narrativa, seja pela paródia, seja por situações inusitadas e muitas vezes absurdas, constituindo-se uma linguagem característica dos gêneros carnavalizados.
À altaneira figura do fino fidalgo, acostumado às andanças pelas cerimônias e festas da corte, descendente por sangue do bravo guerreiro Alffonço de Albuquerque, neto de rei, opõe-se a nova situação em que se encontra o tetraneto del-rei: a de fugitivo de calúnias inconfessáveis que o impediam de continuar em Lisboa, a custo de colocar em risco a própria liberdade ou mesmo a vida. Embarcado na esquadra de D. Duarte Coelho, marido de sua irmã Brites, o Torto sente-se incomodado pela companhia da gente comum:

(...) Desolava-o que o houvessem posto à ordem do próprio cunhado, D. Duarte Coelho. Sangue por sangue, que sangue portava o Duarte, marido da irmã Brites? - a nisso murmurar lhe pilhou agastado de similhante usurpação, por desfavorecido se havendo: que ele, o Albuquerque, neto de rei, comandante não fora e sim comandado. Regalava-se dito privilégio a causa de sua ascendência, a qual a juba lhe eriçava e inflado o peito lhe punha. (Maranhão, 1982, p.11)

O Torto é um orgulhoso de sua ascendência fidalga, marca que o persegue por toda a narrativa, como bem convinha aos bem-nascidos da época em que se situa a diegese. A antiga vida cortês opõe-se a esta, agora, a caminho do Brasil, durante dois meses em uma nau imunda, em meio a homens que lhe causam asco, tendo em vista a repulsa que sentiam ao banho. O espaço da nau é o espaço da carnavalização, em que o alto e o baixo de misturam, se mesclam, apesar da repugnância que sente o fidalgo por outros portugueses que considera menores.

As leis, proibições e restrições que determinavam o sistema e a ordem da vida comum, isto é, extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico e toadas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc. ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade (inclusive a etária) entre os homens. Elimina-se toda distância entre os homens e entra em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar entre os homens. [1a categoria] (Bakthin, 1981, p.105-106)

É no convés do navio que se dão os primeiros contatos que pressupõem a categoria da familiarização. O convés, assim como a praça pública, é considerado como espaço da manifestações carnavalescas, ou seja, como um espaço de subversão, em que o baixo e o alto se misturam, se mesclam, se confundem. Segundo Bakthin:

(...) Na literatura carnavalizada, a praça pública, como lugar da ação temática, torna-se biplanar e ambivalente: é como se através da praça pública real transparecesse a praça pública carnavalesca do livre contato familiar e das cenas de coroações e destronamento públicos. (...) ruas, tavernas, estradas, banhos públicos, convés de navios, etc - recebem nova interpretação público carnavalesca (...) (Idem, p. 110)

Outra categoria do carnaval pode ser observada tanto na construção das relações que se dão entre os que embarcam na nau portuguesa, em que fidalgos e degredados, limpos e sujos, "puros de sangue 4" e "impuros", livres e escravos, obrigatoriamente convivem no mesmo espaço, sujeitando-se uns às atitudes dos outros, longe da sociedade civilizada que os mantinha à distância. As finesses do fidalgo de nada lhe servem naquela nau, ou posteriormente, nas novas terras ocupadas por brutos de toda espécie e habitadas por antropófagos. Tanto o espaço da nau, quanto o da praça da aldeia tabajara e suas festas rituais passam a representar o espaço da carnavalização, em que não há mais a distância entre os homens, desaparecendo a hierarquia e a desigualdade social. Queixa-se o fidalgo em sua Carta à Senhora:

(...) Nesta pocilga mareante em que me pôs a desgraça, miserabilmente aposentado, vossa lembrança é que me alenta, apartando-me da idéia de lançar-me ao abismo e desertar desta imundície que me lança em ponto de vômito. A descomodidade avilta-me, avilta-me a ascendência avoenga, herança minha mais custosa. Imaginai, Senhora, este neto de D. Diniz a ombrear-se a tipos (...) vindos ninguém sabe donde e por que crimes vieram cá estabelecer-se, cardume de indivíduos mal reparados de roupa e bem fornidas as cabeças de só e só excremento. (...) (Maranhão, 1982, p.12)

Temáticas como a pureza de sangue, matéria cara aos ditames da Inquisição que se instauraria no século seguinte, e já insinuada em Lazarillo de Tormes (1554), novela espanhola do Anônimo Renascentista, são veiculadas no discurso do fidalgo cujo patrimônio se resume em sua honra escorada no brasão da árvore genealógica da família, em cujo tronco se encontra um rei português: D. Diniz. Contrapondo-se ao que diz a personagem D. Jerônimo em suas cartas, logo adiante ocorre a narrativa de como se apossou tal fidalgo de sangue real:

__ Verdade. Não abraço hipóteses. Verdade. Bem, terás que conformar-te com um ponto: tua origem é em paço, isto é certo. É em paço. Porém não procedes de casamento. Advéns de espúria vertente. Como eu, digo-te logo, que sou tetraneto ou pentaneto de puta. (....) Sabes de um Afonso Sanches? Pois esse Afonso Sanches era filho natural del rei D. Diniz e de Aldonça Roiz Telha. (...) Pois o filho da Telha e do rei trovador, o sobredito Afonso Sanches, casou Dom D. Tereza Lis, esta filha de conde, o Conde de Barcelos, senhor de Albuquerque. (...) Então! Albuquerques e Sanches entroncam na Aldonça e no Diniz, que é o sexto monarca de Portugal. E daí vens tu e venho eu. (...) (Maranhão, 1982, p.73) (grifo nosso)

A carnavalização da linguagem é realçada pela mescla entre o elevado, a dinastia real, e a origem mundana, representada pela figura da tetravó, amante do rei D. Diniz. Assim, a origem real não impediria que, a partir da saída de Portugal, o fidalgo D. Jerônimo de Albuquerque se encontrasse submetido às mais humilhantes situações, tanto na nau, espaço da desordem e de todo tipo de desleixo, como no litoral, ao tentar uma relação de amizade, frustrada, com o gentio que habitava as terras brasileiras, paródia da iniciativa de Nicolau Coelho, relatada na Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel, em 1500, produzido em português arcaico:

(...) acodirã pela praya homes quando dous quando tres de maneira que quando o batel chegou aa boca do rrio heram aly xbiij ou xx homes pardos todos nuus sem nhuũa cousa que lhes cobrisse suas vergonhas. traziam arcos nas maãos e suas seetas. vijnham todos rrijos para o batel e Njcolaao Coelho lhes fez sinal que posesem os arcos. e eles os poseram. Aly nom pode deles auver fala ne entedimento que aproveitasse polo mar quebrar na costa. Soomente deulhes huũ barete vermelho e huũa carapuça de linho que levava na cabeça e huũ sombreiro prto. (...) (...)5 (CAMINHA, 1500. In: CASTRO, 2003, p.44) )

Na tentativa de trocar presentes, o Torto percebe que os nativos não reagem, e desespera-se, fugindo. As seqüências de fracassos em suas investidas o fazem cair no ridículo, tanto no espaço do grupo de portugueses, quanto mais tarde junto ao grupo de nativos, na aldeia tabajara, após sua captura como prisioneiro de guerra.
Personagem singular, pois não encontra pares entre os portugueses, Jerônimo de Albuquerque deseja imensamente a paz entre os invasores e o gentio, enquanto seu discurso em primeira pessoa revela a defesa das populações nativas na luta pela preservação de seu espaço físico e sua integridade cultural, de forma a desconstruir o discurso do colonizador, que permeia a história oficial, este impregnado de ideologia mercantilista e católica romana.
O discurso do capitão Duarte Coelho, donatário de Capitania no Brasil, é porta-voz dessa ideologia da elite mercantilista portuguesa que reúne o poder real e o poder papal:

__ Assentados que estamos em o dia e em a hora de nossa embaixada, forçoso é que vo-los manifeste a tenção que nos compete em o peito agasalhar: de curarmos os negócios da terra, sem descurarmos dos do céu. E com isto quero significar que leve cada qual o arcabuz ao ombro e o Pater Noster à boca. (Maranhão, 1982, p. 69)

Parodiado e ironizado, o discurso de Coelho faz ver a incoerência das investidas colonizadoras em terras brasileiras. Levar o Pater Noster6 à boca tem um significado muito próximo das ações das Cruzadas, que se estendem à América na descoberta das novas terras, em que a guerra e a religião se irmanam com o objetivo de conquista e cristianização dos "pagãos". Jerônimo de Albuquerque que se opõe à violência, responsabiliza o elemento português pelo início das lutas que se dariam pela posse da terra. O protagonista posiciona-se, inclusive, contra o cunhado Dom Duarte Coelho, que considera maluco. Achincalhado pelo protagonista da narrativa, o capitão Duarte Coelho procura organizar a tropa , cujo treinamento militar é satirizado pelo narrador que visualiza os preparativos para a guerra de forma irônica, quase como uma pantomima. A demonstração de força do "exército português" é, na narrativa, coroada de elementos cômicos que tecem todo o descrédito de sua capacidade em ocupar de forma heróica as terras brasileiras.
O discurso de Maranhão, funciona como contraponto a alguns discursos históricos oficiais, que se encontram entre os documentos de época, como o discurso de Pero de Magalhães Gândavo, cujo extrato procuramos recuperar com o intuito de revelar o processo de carnavalização dessa escrita:

A língua de que usam, toda pela costa, é uma, ainda que em certos vocábulos difere nalgumas partes; mas não de maneira que se deixem uns aos outros de entender: e isto até altura de vinte e sete graus, que daí por diante há outra gentilidade, de que nós não temos tanta notícia, que falam já outra língua diferente. Esta de que trato, que é geral pela costa, é mui branda, e a qualquer nação fácil de tomar. Alguns vocábulos há nela de que não usam senão as fêmeas, e outros que não servem senão para os machos: carece de ter três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta, nem peso, nem medida. (Gandavo, s/d, p.3)

Enquanto o historiador português percebe os silvícolas como verdadeiras feras, e considera que não possuam fé, lei ou rei, a narrativa de Maranhão, por meio do protagonista Jerônimo de Albuquerque, revela em que consiste a "lei tabajara", trata seu chefe por "rei", ao admitir que se casa com uma "princesa", Muira-Ubi, e casa-se, primeiro, segundo a "fé e a tradição tabajara", para apenas posteriormente casar-se na fé cristã. Desconstruindo o discurso de Gandavo e reconstruindo de forma irônica e debochada todo o ritual das festas tradicionais, tanto dos tabajaras quanto dos portugueses, carnavaliza as relações culturais que se dão entre os membros da sociedade indígena e seus "dominadores".
Em seu discurso, por meio das cartas que o personagem Jerônimo de Albuquerque envia a sua Senhora, o autor providencia a desconstrução do discurso da conquista, e sua voz revela sua posição a favor dos antigos donos das terras, os tabajaras, procurando compreender seu comportamento, ritos, danças e leis.
Sua estadia entre os tabajaras, implica em ser despojado de suas vestes de fidalgo, o que equivale à ação de destronamento carnavalesco. Juntamente com suas vestes de fidalgo, perde também todo o poder que lhe era conferido em Portugal. Em terras brasileiras, Jerônimo passa a andar nu, como os silvícolas, subvertendo os valores que lhe são caros. Despido de suas roupas, que o faziam diferente dos homens comuns, é visto como um "Adão". O sol dos trópicos causa-lhe profundas mudanças, inclusive na cor da pele, que perde o branco e torna-se quase acobreada. Se o destronamento por que passa Jerônimo não implica em perda de poder real, significa perda de valores culturais, perda de prestígio, desde sua partida de Portugal, num processo de rebaixamento que o reduz a um quase escravo dos silvícolas, situação que se reverte apenas no final da narrativa, quando Jerônimo parte com Muira-Ubi (Maria do Espírito Santo Arcoverde) para Olinda, onde residia sua irmã Brites e o cunhado Duarte Coelho.
A excentricidade, outra categoria carnavalesca, se revela nas imagens do fidalgo pelas terras brasileiras, tendo como ponto de partida sua tentativa de amizade com os silvícolas, que o rebaixam perante os homens que tem sob seu comando, pela forma como defende a idéia de solidariedade entre nativos e invasores, pela sua relação com o poeta Camões, ambos cegos de um dos olhos, por sua linguagem e ambigüidade no comportamento. Assim que capturado pelos indígenas, continua preso aos rituais e cerimônias da Corte, seja pela forma de expressar-se, pela gentileza, ou por suas mesuras, as quais jamais abandonou.
A carnavalização da literatura no texto de Maranhão parodia e ironiza a própria produção literária da época em que se passa a narrativa, o século XVI. Em seus sonhos permonitórios, o anti-herói recupera a figura de Luiz Vaz de Camões, subvertendo pelo discurso a qualidade da produção literária daquele que seria o maior escritor épico em língua portuguesa. A carnavalização da própria construção literária ocorre em diversos momentos, e tem seu ápice no episódio em que o Torto se recorda de dois poetas: o Bandarra, cujos versos faziam uma premonição da descoberta de novas terras e os de D. Juan Gaio, que lembra a honra do sangue dos Albuquerques. Jerônimo conjectura, então sobre os versos de Camões:

(...) ao recordar-se de uns que particularmente o tocava, por a si dizerem-lhe também respeito, de um Juan Gaio, D. Juan Gaio: "Do limpo sangue dos godos / do filho do rei Diniz / Vêm os Albuquerques todos / com a quinas e a flor de Lis" (...)
O caguinchas do Camães talharia fermosos versos assi?, indagou-se o fidalgo, de pronto entrando a pulsar-lhe o godo sangue e a luzir-lhe a valerosa ascendência no olhar de sobranceria, librando sobre aqueles matos e aqueles feros. (...) (Maranhão, 1982, p.35)

Subvertendo as críticas literárias oficiais, a voz do Torto insinua que Camões não seria capaz, já que desconhecido, de escrever versos à altura destes que foram feitos especialmente para homenagear as origens reais de sua dinastia, ou outros poetas menores, porém conhecidos na época. Outras paródias se instalam no texto, aludindo a textos de autores famosos, que se mesclam no discurso em um processo de estilização bastante interessante que se espalham pelo texto. Especialmente nas cartas à Senhora, Jerônimo de Albuquerque parafraseia ou ironiza os versos dos sonetos ou da épica camoniana: "Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!" (MARANHÃO, 1982, p.46) ou "(...) prenda minha gentil que entre as pernas guardo" (Idem, p.56) = Alma minha gentil que te partistes", ou ainda, título de obras da literatura brasileira surgem no texto, como "Tutaméia" (id.ibid., p.70). Surgem referências explícitas a autores, como a João Cabral de Melo Neto: "Sou alto e ledo; ledo sou: aonde quer que eu vá encontro sempre os rios e suas águas lavadeiras vão limpando as paisagens. De qual João escutei esta voz?, de um Cabral amantíssimo de rios!: em qualquer viagem o rio é o companheiro melhor. (...)" (Maranhão, 1982, p.113). Ou a referência a Rui Barbosa: "__ Tão tardiamente está a enxergar o que tinhas mesmo à mão! Criança: não verás nenhum país como este!" (Idem, p.114)
A paródia da literatura pela literatura, organiza o que consideramos uma metalinguagem literária carnavalizada, uma vez que considerável quantidade dessas estilizações paródicas produzem o riso. Com referência ao riso carnavalesco, Bakthin considera que:

O próprio riso carnavalesco é profundamente ambivalente. Geneticamente, ele está relacionado às formas mais antigas do riso ritual. Este estava voltado para o supremo; achincalhava-se, ridicularizava-se o sol (deus supremo), outros deuses, o poder supremo da terra para força-los a renovar-se. Todas as formas do riso ritual estavam relacionadas com a morte e o renascimento, com o ato de produzir, com os símbolos da força produtiva. (...) Na forma do riso resolvia-se muito daquilo que era inacessível na forma do sério. Na Idade Média, sob a cobertura da liberdade legalizada do riso, era possível a paródia sacra, ou seja, a paródia dos textos e rituais sagrados. (...) No ato do riso carnavalesco combinam-se a morte e o renascimento, a negação (a ridicularização) e a afirmação (o riso de júbilo). É um riso profundamente universal e assentado numa concepção do mundo. É essa a especificidade do riso carnavalesco ambivalente. (BAKTHIN, 1981, p. 109)

A paródia dos textos bíblicos que constitui uma das características da linguagem carnavalizada, também presente nos textos das narrativas picarescas do século XVI e XVII, surge no texto de Maranhão, entremeando o discurso do cômico-sério, nos moldes das sátiras da Idade Média, de acordo com os pressupostos bakthinianos, seja nas palavras do narrador, ou pela voz de D. Duarte Coelho, ou ainda, a do protagonista, em que o sagrado e o profano se cruzam, especificando uma outra categoria da carnavalização da literatura: a profanação:

"(...) Deus tenha piedade de mim, que nunca a tive de ninguém. ( MARANHÃO, 1982, p. 47) [o Torto, em carta à Senhora]
"__ Mininos meus. Que todos são mininos meus, eu o pai, eu o filho, eu o espírito santo." (...) [D. Duarte, decidindo sobre a guerra]
E o fogo se fez. E a luz se fez, E a fumaça se fez. (...) [= E fez-se a luz (Gênesis)](Idem, p. 66)
(...) o caminho para a distância, chão nosso de cada dia, chão de mínimos amantes. (id. ibid., p.67) [o discurso de don Duarte]

Estas e outras construções paródicas, que invadem a narrativa, oferecem um olhar profano sobre o religioso, marca dos discursos da época, insinuando o conhecido provérbio português quinhentista de que "Abaixo do Equador, tudo é permitido." É essa permissão em terras tropicais que o narrador de O tetraneto del-rei procura retratar e ironizar na narrativa, desvelando o lado humano das relações, os fatos de um mundo en envers, subversão dos valores ideológicos da Inquisição na Europa, da Igreja castradora, das leis e regras repressoras da sociedade portuguesa.
O caráter anti-heróico do protagonista pode funcionar muitas vezes como o ponto de partida para o enquadramento em um romance no gênero picaresco, pois, segundo Gonzáles, "a picaresca nasce na quebra do modelo do narrador onisciente - de terceira pessoa, substituído pela pseudo-autobiografia - e na paródia do herói clássico" (GONZÁLES, 1994, p. 339), sendo o segundo aspecto a pedra de toque para a caracterização de um romance do tipo picaresco.
O Torto encaixa-se nos requisitos acima, funcionando como a paródia do herói clássico, o fidalgo destemido, cuja espada funciona como guardiã dos valores cavaleirescos. Espada essa que o Torto procura não utilizar nunca, antes, apostando na paz e em seus órgãos sexuais, metáfora satirizada da espada do fidalgo português nessa narrativa.
O tamanho de seus órgãos sexuais é um dos elementos do cômico, citado em toda narrativa e associado a sentimentos de poder, orgulho, encantamento por parte do protagonista e, ainda, de inveja, desejo, raiva, humilhação por parte de outros personagens. Ao deparar-se com o desejo de d. Jerônimo d'Albuquerque, expresso por sua borduna, a filha do morubixaba se assusta e o encontro entre o casal que daria origem a um dos tipos-base formadores do povo brasileiro é satirizado pelo narrador, que conta a história abordada sob o viés cômico, pela visão carnavalesca, tal que a gritaria se espalhou pelo centro da tribo, espaço reservado às festas rituais e comemorativas. O interesse do homem põe em disparada a moça.
Os anti-heróis das narrativas picarescas, geralmente, possuem uma origem modesta, geralmente marginalizada, por questões econômicas, mas, principalmente, pela questão da honra e da "impureza de sangue". Torto, ao contrário, orgulha-se e gaba-se de sua origem aristocrática. Não descendendo, de marginais, termina por enquadrar-se na marginalidade quando se desentende com seu cunhado e é posto à parte do grupo e, mais tarde, quando prisioneiro, fica alijado tanto dos grupos sociais que despreza quanto dos índios, que o ridicularizam.
Muitos críticos conceituam os pícaros como seres que enfrentam uma sociedade hostil, armados apenas de sua astúcia. A astúcia é uma das características principais do Torto, que consegue manter-se vivo, recusando-se a participar das lutas contra os índios, e procurando meios de ser poupado do ritual antropofágico quando se torna prisioneiro dos tabajaras. O recurso a essa astúcia leva o pícaro à trapaça, o que não ocorre com o "Torto", cuja única grande trapaça se consolida com o seu casamento, cuja articulação, segundo o narrador, pertence a Muira-Ubi, que subverte as leis tabajaras para conseguir o marido que deseja.
O projeto de ascensão social, instância peculiar da picaresca clássica, encontra-se presente na narrativa, seja pelo desejo de apoderar-se das riquezas da terra, que habita as mentes tanto do protagonista, quanto de D. Duarte ou dos demais personagens que sonham com a riqueza e a nobreza, seja pela superação individual de seus percursos individuais. Assim, o Torto sonha em integrar-se à nobreza, não por via das armas e da guerra, mas por ser reconhecido como o "pacificador da Nova Lusitânia", através de um pacto de paz entre índios e brancos que seria reconhecido até mesmo pelo rei português. Ou seja, em seu projeto de ascensão social, o Torto pensa em valer-se da astúcia e de suas habilidades como mentiroso e enganador para estabelecer nas novas terras a hegemonia portuguesa via mestiçagem, ou seja, estabelecendo mésalliances.
O "princípio da viagem", que faz do pícaro um ser itinerante também se encontra presente na narrativa O tetraneto del-rei, pois O Torto viaja de Portugal às terras brasileiras, saindo em seguida do litoral às matas, e das matas à aldeia tabajara, de onde, finalmente, parte em direção a Olinda. A antítese entre a metrópole e o mato é uma das tônicas da narrativa, quando o Torto se depara com a frustração e a certeza de que jamais regressaria a Lisboa.
Com relação ao trabalho, considera-se que o pícaro clássico procura caminhos alheios ao trabalho para atingir o status social que deseja e que considera nobre. O meio que escolhe para obter seu sucesso é o da conquista, coincidindo neste ponto com os objetivos do protagonista de O tetraneto del-rei, pois D. Jerônimo procura meios bastante originais de conquistar as novas terras e suas riquezas: a paz e a malandragem. Em seu universo encontra-se ausente o trabalho, mesmo no tempo em que estava em Portugal quanto em terras brasileiras, confirmando mais um elemento em seu perfil picaresco. Segundo ele, entende apenas de "mulheres". Esse traço erótico tão enfatizado entre as características de D. Jerônimo de Albuquerque é que o faz integrar o espaço da malandragem e rompe sua relação com o pícaro clássico, assim como a presença de patrões ou amos, que se encontram ausentes na narrativa.
O maniqueísmo existente nos textos picarescos clássicos, cujos extremos entre o "bem" e o "mal" necessitam ser vencidos pelos pícaros para que possam encaixar-se entre os "homens de bem", no contexto do anti-herói brasileiro também se dissipa. Na narrativa O tetraneto del-rei, as fronteiras entre o bem e o mal se esvaziam e os discursos se contrapõe, pois o conteúdo do discurso histórico oficial e das cartas de D. Jerônimo à Senhora, é parodiado ironizado e desmentido, muitas vezes, pelo discurso do narrador em terceira pessoa.
O bem e o mal são trazidos de fora para o universo dos protagonistas, mas estes não têm consciência de sua dimensão, apenas agem em resposta a uma sociedade que os oprime, como no caso do Torto, prisioneiro das terras brasileiras, sujeito às ordens de D. Duarte e, posteriormente, prisioneiro do tabajaras e sujeito às suas leis. O Torto, no entanto, é capaz de ludibriar os aspectos do bem e do mal que chegam ao seu universo trazido pelas forças exteriores e, superando-as é capaz de instalar uma nova ordem de relações em que essas forças são anuladas.
Carnavalizando as forças do mal e do bem, por meio de um processo em que essas forças se anulam, a narrativa parodia o bem e o mal, e, no final, a festa de casamento tabajara de Jerônimo d'Albuquerque e de Maria do Espírito Santo Arcoverde, recupera a igualdade entre os homens, revelando a subversão dos valores religiosos, dos ritos, através da orgia que se instala durante as comemorações do casamento inter-racial, na praça da aldeia tabajara:

Foi esponsália ou saturnália? Que declarados esposos, Torto e Muira-Ubi, ao abrigo da lei tabajara, rompeu um estouro de boiada. Eram os convivas a milhares. Que se banquetearam, atafulharam-se, abarrotaram-se, lambujaram, entornaram, libaram, adegaram-se, encantrinaram-se, dessedentaram-se, foliaram, folgaram, patuscaram, bailaram, galantearam, fornicaram, motejaram, pecaminaram, prevaricaram, arrotaram, bufaram, babaram, desaforam-se, ofegaram, exaustaram-se, pompearam, gargalharam, roncaram, folgazaram, supiraram, saciaram-se, fremiram, arfaram, suaram, masturbaram-se, esmurraram-se, unharam-se, dentaram-se, frecharam-se e dormiram um sono morto, os que mortos não restaram jazidos ao chão. (Maranhão, 1982, p.190)

Diante da orgia que se instalou na festa é possível avaliar o nível de relações que se estabeleceu entre os homens, em um espaço carnavalizado, a festa da carne, considerando que, provavelmente, muitos prisioneiros portugueses haviam servido de banquete nas comemorações das bodas, de carne humana, subvertendo as regras do próprio carnaval, em que a profanação, a excentricidade, as familiariadades e as mésalliances se encontram presentes na praça pública, onde D. Jerônimo é o "príncipe" tabajara, ao casar-se com a "princesa", filha do morubixaba, uma festa popular, uma afronta aos rituais cristãos, a profanação do sacralizado da religião pelo elemento europeu.
Segundo Roberto da Matta, existe uma diversidade carnavalesca e, "todos eles são atualizações de uma mesma dramatização fundamental, indiscutível enquanto norma e práxis e, por isso mesmo, capaz de inventar seus múltiplos planos dentro de uma fantástica unidade dramática" (MATTA, s/d., p.67)
É na diversidade carnavalesca que se encontra o ritual dos nativos brasileiros, em que a presença do fogo, das imagens biunívocas, dos rituais e das profanações, do riso carnavalizado se encontram na senda de uma história que recorta o oficial e o ficcional, revelando uma outra faceta das origens do povo brasileiro, das relações entre portugueses e colonizadores, em que a sátira atinge a uns e outros da mesma forma, e de um espaço em que somente a astúcia e a malandragem poderiam superar as barreiras da integração. O Tetraneto del-rei presta-se a coroar de êxito uma história em que os vencedores não se consolidam como heróis, e sim os vencidos que, durante séculos, manipularam os anseios dos invasores, invadindo suas noites com imensos pesadelos antropofágicos e fantasmas da morte.

BIBLIOGRAFIA

BAKTHIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiésvski. Trad. De Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. (239 p.)
CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Idem. O discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades,
CASTRO, Sílvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L & PM, 2003 (156p.)
GANDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz. S/d, p.3
GONZÁLEZ, Mário M. Os Malandros do Pós-Milagre. In: Idem. A saga do anti-herói. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. (p.315- 357)
MATTA, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro. Zahar Editores, (s/d) (p.67-108)

Notas

1 As mésalliances compreendem os casamentos que se dão entre pessoas de classes sociais diferentes, ou de etnias diferentes, neste caso, refere-se ao casamento de um fidalgo português com uma silvícola brasileira, evidenciando tanto a diferença de classe social quanto étnica.

2 Segundo Antonio Candido, ao analisar a obra de Manuel Antonio de Almeida, o malandro Leonardinho, filho de Leonardo Pataca, é o malandro brasileiro, que se movimenta entre as classes sociais, em dois universos diferentes: o da ordem, representado por um grupo de personagens mais propensas às normas e regras sociais, e uma outra, marginalizada, cujo universo é o da desordem.

3 MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 3ª ed., Rio de Janeiro: Zahar Editores, s/d.

4 A questão da pureza de sangue encontra-se associada aos valores raciais e religiosos do século XIX. Assim, os "puros de sangue" são aqueles descendentes de antigas famílias portuguesas, enquanto os impuros são os de origem judia e moura, mouriscos e toda espécie de pessoas que se qualificam entre os "hereges" e "cristãos novos".

5 TRADUÇÃO: Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.
Ali não poude haver deles fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um barrete vermelho que usava na cabeça e um sombreiro preto.

6 Expressão latina = (a oração do ) Pai Nosso